MANUAL DA FAXINEIRA


Um livro sensacional composto de 43 contos, suas histórias podem ser lidas como um vislumbre da vida de Berlin, de seu legado, uma autoficção que ganha mais força a cada história que é lida.

A escrita evolui do rural, passa pelos subúrbios e amadurece na cidade, escrita com a ferocidade e a sensibilidade de quem as sofreu e superou; a prosa de Lúcia transborda de vida. Berlin nos fala de situações em que a marginalidade e o conformismo, que persegue as pessoas internamente, obrigam seus protagonistas a tomar decisões que não permitirão um passo atrás. A observação da cidade e dos seus vícios, é um papel fundamental no seu estilo, em suas histórias, ela também nos enche de ironia e de riso com a realidade de seus personagens que não param de nos lembrar de situações do cotidiano. Suas protagonistas são mães solteiras, faxineiras, enfermeiras, secretárias e professoras de literatura em escolas ou presídios; empregos onde ela trabalhou para sustentar seus quatro filhos.

Em suas histórias, meninas aprendem sobre amizade e racismo nas cidades petrolíferas de El Paso; estudantes universitários apaixonados por literatura no Chile; esposas lidando com o vício de seu parceiro; enfermeiras em pronto-socorro; mulheres que veem sua irmã morrer de câncer na Cidade do México; um mergulhador que visita uma família em Acapulco e não encontra maior prazer do que a leveza do oceano; escritores enfrentando um bloqueio de página em branco.

Perseguida por um alcoolismo que persistiu durante a idade adulta, Lúcia nos mostra uma mãe preocupada com seus filhos, mas com crises de delírio, onde a abstinência a acorda de madrugada com tremores e suores, seus filhos levam sua bolsa todas as noites para que não possa comprar bebidas.

“Os momentos de prazer mais intensos não podem separar-se de um grão de desespero porque já contêm uma premonição de morte”, escreve Sergio Pitol sobre a vida, esta frase parece ressoar em todo o seu esplendor com Lucia Berlin, na sua vida e na sua escrita.
Manual da Faxineira é um dos livros que mudou para sempre minha percepção da cidade, das pessoas que habitam esse corpo em movimento e das entranhas de concreto que chamamos de lar. O trabalho de Berlin deixa uma marca e uma sensação agridoce na alma devido a uma overdose de vida. Não há uma história mais memorável do que outra, todas são um olhar único e irônico sobre os infortúnios da vida, a pobreza, os vícios e a autodestruição. Não são  necessários tecnicismos ou metáforas elaboradas que expressam sentimentos e emoções fortes, a realidade é o suficiente para nos envolver.

Numa sociedade que se comunica por espectros digitais, onde quanto mais irreais as coisas e as pessoas, mais reais, vivas e próximas nos parecem, Berlin destaca a importância da amizade e da intimidade, características que agora se ouvem de longe, tornam as relações sociais tão desconfortáveis. Em suas histórias, romance e desejo não são sexuais em primeira instância, uma amizade sincera é lida nas entrelinhas, uma compreensão do outro como melhor amigo preenche o relacionamento.

Nos anos noventa, a saúde de Berlin piorou devido a uma escoliose diagnosticada em criança, que na idade adulta parecia um pulmão perfurado e que a partir de meados dos anos noventa a fazia viver com um tanque de oxigênio onde quer que fosse. Em 2001, a deterioração de sua saúde a fez ir para Los Angeles para ficar perto dos filhos. Ela faleceu em 12 de novembro de 2004, seu aniversário.

O caminho para o inferno é feito de boas intenções, e de excessos, virtudes e defeitos, a maior parte das páginas são escritas na literatura e na história da arte. Como a vida de Berlin, podemos encontrar muitos no meio da criação artística: a sublimação do caos interno e da autodestruição para a contemplação e a expressão artística. Nestes casos, a criação parece ser outra forma de se compreender a si mesma e seu caos interno.

Jantares


Revista Torquato

Alessandra Barcelar

Em Porto Príncipe, Colombo, Jakarta ou Recife servem as refeições do
amo, em troca do direito de comer o que cai da mesa; vendem frutas nos mercados de Bogotá e chicletes nos ônibus em São Paulo.” (Eduardo Galeano)

Quando o homem se aproximou da mesa com o copo de conhaque na mão, o velho estava quase terminando a costela com purê de batata e pimenta. Ele adorou a combinação das pimentas com a carne, mas gostou mais do sabor que deram ao purê.
Assim que terminou a refeição, limpou a barba e o bigode levemente untado com óleo, tomou um gole de vinho na boca, suspirou e começou a falar:
“Quando os Queiroz e Souza chegaram à mesa para o jantar, Miguel já estava em seu posto. Miguel tinha apenas nove anos, mas parecia que há vinte sua mãe o havia dado àquela família porque não podia…

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Caballo un poema de Alessandra Barcelar


Revista Quinde Cultural

CABALLO
Al principio fue el paso
Suave
Luego vino el trote, brújula
Finalmente, galope
No era uno, cien caballos galopando en mi pecho
Tu presencia desgarrando mi caja torácica
No tomó mucho tiempo. No quería un establo.
Enseguida vino la patada.

imagen: freepik.es

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Antologia Mitografias – Da organização à publicação


Colecionador de Sacis

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Por Andriolli Costa

Tudo começou com um comentário dos mais despretensiosos. Se teve mais do que um like, acho que foi muito. Mas era o suficiente. “Léo, será que os apoiadores curtiriam uma Antologia Mitografias?”.  Um emoji furtivo pontuava a pergunta, como que antecipando as desculpas de que era só uma brincadeira. O famoso se colar, colou.

E não é que colou?

Era 03 de novembro de 2016 quando soltei a ideia no Templo do Conhecimento, o grupo de apoiadores do Padrim do Mitografias. O Léo que botou fé na coisa era Leonardo Tremeschin, editor do site que há mais de 10 anos investiga mitologias do mundo inteiro em um intenso trabalho de curadoria. Lucas Rafael Ferraz, colaborador do site, também manifestou interesse. Na mesma semana abrimos uma conversa em inbox. Dois meses depois, em janeiro de 2017, saia o edital da Antologia Mitografias…

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AS GRANDES PESSOAS DA MINHA VIDA


as grandes pessoas da minha vida

Veja ali. Encarquilhada sobre a surrada carteira de ferro pintada em cinza, Fábia termina a redação do relatório. Vejo empenho em Fábia. Alguns ônibus — da janela se viam — passavam levantando o pó da rua escondida. Caneta vermelha e os pés descansam na carteira que habita o espaço de sua frente. As carteiras continuam de ferro. As carteiras continuam cinzas, apesar do vermelho da caneta e do empenho de Fábia. Daqui de onde estou agora, vejo que Fábia é sozinha. Que sua blusa esconde no colorido feroz um desprezo de seios. Olho para o ventilador no teto. Fábia parou um instante para enfiar o bocal da caneta no orifício que dá para o labirinto esquerdo no seu ouvido. Fábia esperava alguma coisa em sua vida, pacientemente. Olhei-a, novamente. Fábia retira o excesso de cera.

Saio. Vou pegar um café no térreo.

No elevador, encontro-me com Carla Patrícia. Chegou vestindo um azul fazendo dobras na pele. Um pouco acima do peso ideal, rechonchuda, a vestimenta lhe apertava o par de enormes peitos. Tinha peitos e fingia sabedoria indo ao doutorado toda terça-feira lá na capital. Carla Patrícia também era sozinha. Carla Patrícia esperava alguma coisa da vida, assim, assim… Com ela, entrou também a Cláudia Janete. Eu não gosto da Cláudia Janete. A culpa é daquela banha toda despencada logo abaixo dos seus peitos despencados. Uma barriga asquerosa, horrível. Cláudia Janete é a expressão máxima da falta de amor próprio. Ela não se ama. Tenho certeza disso. Todos têm. É uma banha purulenta. Asquerosa, repito. Podem me chamar de preconceituoso, mas Cláudia Janete vai permanecer sozinha por causa dela mesma. Ninguém vai amar aquela banha toda. É excesso demais. É redundância em matéria de gordura. E o pior é que Cláudia Janete sempre me cumprimenta quando chego ao trabalho. Eu finjo que gosto dela e que tenho respeito. Pego até na mão dela. Cláudia Janete parece que passa sebo na palma da mão. Eu não gosto da Cláudia Janete. E a culpa, todo mundo sabe, é daquela banha toda despencada logo abaixo dos seus peitos despencados.

O elevador chega ao térreo. Vejo as duas tomarem a direção da portaria. Sigo meu caminho. Dou de cara com quem? Com ele, Andielson Prestes. Andielson Nunes Prestes de Ramos, 47 anos, natural de Bodocó-PE, atua na área de Marketing Pessoal, relacionamento político e com pesquisas de opinião. É administrador de empresa com MBA pela Oxford, sendo pioneiro na região no ramo de agências de propaganda. Sendo assim, a conclusão que tiramos, logo de cara, é a de que Andielson labuta com o “improvável”, i.e., com gente. E isso basta para explicar a razão pela qual Andielson até hoje não aprendeu a lidar com o humor do Ego, seu totó. Você concorda comigo? Esquece! Ali está o Tom, com sua eterna cigarrilha. Ele botou a culpa no León Pinelo. A Amazônia não tinha nada de ser este tal Paraíso Terrestre. “Deus não é brasileiro, minha gente!”, dizia.

Fito a moça da recepção. O nome dela é Islana Gracy Joiyce. Imagino pequenas narrativas com uma personagem que possui esse nome, por exemplo: “Raios de sol apontaram dentro do quarto de Islana, que de chofre foi ao espelho. Quis averiguar possíveis rugas ou olheiras ou marcas feitas pelo travesseiro de algodão. Levantou a camisola de seda e apalpou os seios de pêssego. Não encontrando nódulos, despiu-se completamente. Procurou pelo sabonete antigermes, escovou os dentes com escova automática, pôs a touca sobre a cabeça e banhou-se. Delicadamente, atiçou a circulação com uma bucha vegetal trazida do Marrocos. Lavar o cabelo só dia sim, dia não. Hoje é terça. Portanto, dia não. Pesquisou o sabonete líquido de leite de gnu africano, bom para evitar flacidez precoce. Passou quarenta e dois minutos mais 34 segundos sob o chuveiro e não pensou no povo etíope sem água para beber. Islana ainda urinou e, por fim, preveniu-se contra o “boi” que poderia vir hoje ou amanhã. Usou aquele com gel e abas. Com a toalha enrolada no corpo, foi em direção à mesinha de perfumes. Perfumou-se. Sutiã, corsário, blusa de babadinhos, óculos contra-UV, lápis, rouge, batom, pulseiras, anéis, brilhos, brincos, unhas, misses, piranhas, um mocassim e uma tri-fil bege. Islana Gracy Joiyce ia tomar café.”

Dou risada das coisas que penso. Por dentro, sou muito engraçado.

— Bom dia, Anália.

— Bom dia, seu Gilberto.

Café com pão logo cedo. Para inchar e queimar, já que a vida andava mesmo era muito murcha. Anália era uma mulher de meia idade que tinha uma raiva do Marquês de Pombal. Lá pelos seus dezesseis ou dezessete anos de idade é que Anália viu pela primeira vez um livro em sua frente. O primeiro e o único, diga-se de passagem. E diz até hoje nas rodinhas de amizade dominical ou nas da manicure quinzenal que era um tal de Quaresma que ia para todo canto defendendo uma língua que era uma língua de índio dizer. O tupi. Anália diz também — e diz sempre — que leu o livro todinho e que ficou curiosa e que pesquisou umas duas olhadas numa enciclopédia atrasada, velha e empoeirada que tinha na escola e que foi a única vez que ela havia ficado tão interessada assim com as coisas da escola. Lembra que tinha sido tudo por causa do Marquês de Pombal, um homem que na imaginação dela devia andar sempre com uma roupa cor de tangerina, com um chapéu de penas de pavão e um bigode grande lhe fazendo o desenho do contorno da boca. E que devia ser mal, muito mal. Foi a única vez que Anália se rebelou nessa vida. E era nessas mesmas rodinhas de amizade dominical ou nas da manicure que ela abria a boca, inflamada num orgulho obsoleto e imprestável, e proclamava:

— Os brasileiro devia era de dizer era o Tupi!

Pobre Anália! Santa ingenuidade! Bom trabalho, minha querida! Na fila do café, esbarrei-me com Jorge Maurício da Assessoria Técnica. Contam as más línguas que um dia a mulher de Jorge Maurício foi comprar o pão deles de cada dia na padaria Regimone, uma rua depois da deles. Chegando lá, observou que o carro do homem alto e careca esperando o saco de pão na fila estava com um amassado na porta do carona. A mulher de Jorge Maurício não perdeu tempo. Olha, meu marido, o Jorge Maurício, é um ótimo funileiro e pode dar um jeito no amassado ali na porta do seu carro, disse a mulher de Jorge Maurício. O homem alto e careca acenou um sim, ainda meio afobado com a ideia de ter de gastar mais dinheiro com aquela baranga de carro. Mas a mulher do Jorge Maurício não perdia tempo e repetiu a indicação do serviço de lanternagem no qual o Jorge Maurício tinha se especializado. O homem alto e careca, já com o saco de pão em uma das mãos pagando já os dois reais de pão, acenou um sim mais afobado que da primeira vez que acenou o primeiro sim. Mas a mulher do Jorge Maurício não perdia tempo e acabou se esquecendo da fila e do saco seu de pão e seguiu o homem alto e careca até o carro e fez análise com as mãos, apalpou, fungou, sentiu, alisou e por fim disse que o Jorge Maurício, seu marido, é um ótimo funileiro e que ele podia dar um jeito no amassado da porta do carona. O homem alto e careca acenou um sim, mais afobado que o ainda afobado da outra vez que tinha sido talvez a terceira ou quarta vez da indicação. Finalmente, já dentro do carro, o homem alto e careca deu a partida, acenou um último sim muito mais afobado que o sim da terceira ou da quarta vez à mulher do Jorge Maurício que não perdia tempo e que se preparava para passar o orçamento do serviço que o seu marido, o Jorge Maurício, podia fazer no amassado da porta do carona do carro. O homem alto e careca, sem titubear e sem acenar um derradeiro sim meio que deveras muito mais que afobado com a ideia de ter de tirar dinheiro do salário já desgraçado demais que ganhava como funileiro na Oficina Martelinho d’Ouro que ele mesmo tinha aberto no mês passado, acelerou forte de fazer cantiga com os pneus. Feliz por não ter perdido tempo, a mulher do Jorge Maurício foi, agora sim, receber o saco de pão que se encontrava já sobre o balcão da padaria Regimone. Enquanto isso, o seu marido, o Jorge Maurício, colocava sobre a geladeira, na cozinha de casa, o dinheiro do pão de amanhã. Mas isso, dizem, foi há bastante tempo.

Um duplo — pensei, ao me aproximar da máquina de café.

Alessandra Barcelar é historiadora, vive em São Paulo, onde nasceu e atua na área da Saúde. Colaborou para revistas de literatura como Amálgama e Revistas Luso-Brasileira. Participou do laboratório de escrita criativa com Evandro Affonso Ferreira. Atualmente integra o projeto de leitores voluntários no Instituto de Infectologia Emílio Ribas e Contadores de histórias na Rede Social Senac.

Postado originalmente: https://revistagueto.com/2017/07/13/as-grandes-pessoas-da-minha-vida/

 

MAIS LAIQUIS


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MAIS LAIQUIS – MARCIO RENATO DOS SANTOS

O livro de contos oferece 13 histórias rápidas e de agradável leitura, bem humoradas, que fala ao leitor sobre o isolamento e a virtualidade.
O título do livro fala de uma maneira irônica sobre o novo comportamento de conversas por “curtidas”, o desejo de visibilidade instantânea, e o fim da privacidade, a sensação de estar “vivendo o aqui e agora”, levando o leitor a refletir sobre uma nova interpretação da palavra “compartilhar”.
Porém, algo que fica claro é que o humor é apenas aparente, quase todos os contos abordam um tema oculto da alma: a crueldade, mesclada em momentos de narração com momentos de diálogos diretos e bem estruturados como no conto “O dia em que te vi”. O conto Bode Careca, na minha opinião, o melhor conto do livro, demonstra bem como a desconexão com o real, nos afeta diariamente em todas relações, inveja…

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Arquitetos do Futuro


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Este livro é tão impressionante que antes de tudo eu queria indica-lo para todos os apaixonados pela ficção científica.
São oito contos que, segundo o editor, tem a intenção de representar o que de melhor existe no gênero. Ao meu ver, ele foi extremamente bem sucedido. Quero fazer um comentário breve sobre alguns dos contos, mas já adianto que cada um deles é significativo na carreira desses oito mestres e que alguns são bastante difíceis de se encontrar.

• O Demonstrador Quadridimensional – Murray Leinster: não conhecia o autor e fiquei impressionada com a breve sinopse (onde é dito que ele é o criador do fundo projetado, ou “fundo azul”) e o quanto é engraçado o conto. É sobre um herdeiro que recebe uma máquina capaz de buscar uma cópia de qualquer ser ou objeto no passado. Envolve um número variável de dançarinas, moedas de 25 cents e cangurus amigáveis.

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O OUTRO LADO DA NOTÍCIA


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    O OUTRO LADO DA NOTÍCIA

Até que ponto as notícias reais podem inspirar a literatura? Em tempos, a literatura vem  conquistando adeptos; por outro lado o jornalismo está perdendo a credibilidade, e neste jogo de poderes, toda e qualquer indagação sobre a veracidade dos fatos narrados são irrelevantes em razão das próprias sensações despertada no leitor diante de um estilo tão provocativo como é o próprio jornalismo literário. Aliás, ótimas referências não faltam, é justamente nessa passada que o O outro Lado da Notícia abre as lentes-da-verdade para a abordagem de um quotidiano tão nosso, é dessa capacidade assombrosa que a nossa realidade (processada através da leitura) se reinventa.

Ainda que a antologia de contos tenha sido lançada em Setembro de 2016, este livro merece uma leitura atenciosa, pois tanto ele vem se refazendo no intenso processo de validação junto com os acontecimentos do nosso dia a dia, quanto pelo…

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A pobreza do mal – Theodore Dalrymple


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I.

A única causa inquestionável da violência, tanto política como criminosa, é a decisão pessoal de a cometer. (Excluo aqueles casos raros nos quais está em jogo uma malformação neurológica ou distúrbio fisiológico). Deste modo, qualquer estudo sobre a violência que não leve em conta os estados de espírito é incompleto e, na minha opinião, seriamente insuficiente. É Hamlet sem o Príncipe.

Evidentemente, os estados de espírito têm também suas causas. Mas a procura por causas remotas ou supostamente últimas constitui freqüentemente o meio pelo qual evitamos a consideração de causas próximas, sempre inconvenientes ou desconcertantes. Tentamos esvaziar o mundo do seu conteú- do moral atribuindo tudo a forças impessoais que, naturalmente, só nós, espertos como somos, podemos remediar – logicamente, tão logo nos dêem o poder para tal.

Ironicamente, contudo, o hábito de se enxergar pessoas como exemplos de abstrações políticas ao invés de se olhar para a sua realidade concreta como indivíduos foi umas das causas mais poderosas da assustadora violência política do século passado. Matar um inimigo em virtude da raça ou classe à qual pertence é mais fácil do que matar o Sr. Smith ou o Sr. Jones. A própria extensão do massacre servia para assegurar àqueles que o cometiam de que estavam a serviço de algum propósito mais elevado, pois, caso contrário, jamais teria sido levado a cabo.

II

Meu interesse pelas causas da violência, se não foi de todo extenso em minha vida, ao menos tem sido bastante intenso. Por inúmeros anos, viajei por países fustigados pelo flagelo de guerras civis, inclusive na América Latina. Foi na América Central e do Sul que aprendi aquilo que talvez tivesse sido uma conclusão óbvia extraída dos livros de história, particularmente a da Rússia do séc. XIX, de que a violência política prolongada não é a expressão espontânea da frustração, da pobreza ou da revolta contra a injustiça, por mais gritantes que sejam, mas sim de disputas entre elites que competem entre si e entre facções ansiosas por se tornarem uma delas. Quanto à explicação das causas da revolta, muito mais importante do que as condições econômicas dos países foi a rápida expansão das universidades para além da capacidade da economia nacional de empregar os serviços dos jovens segundo o patamar a que eles julgavam ter direito com base no seu nível de educação. Revoltas violentas emergem não da miséria, mas do orgulho e da importância autoconferida, e depois frustrada.

Em nenhum outro lugar o papel das universidades no estímulo à violência foi melhor e mais catastroficamente ilustrado do que no Peru. De todos os movimentos de guerrilha latino-americanos que conheci, o Sendero Luminoso foi de longe o pior, e incomparavelmente o mais brutal. Vi certas coisas em Ayacucho, no auge da insurreição, que me convenceram de que, caso o Sendero não fosse desmantelado, o Peru se tornaria o próximo Camboja, e isso numa escala muito mais assustadora. De fato, a ambição do Sendero era levar o Ano Zero de Pol Pot ao mundo inteiro.

O Sendero não surgiu de uma revolta espontânea de camponeses oprimidos desde tempos imemoriais, como muitas vezes foi pintado, mas foi sim um filhote intelectual do professor de filosofia Abimael Guzmán (que tinha escrito sua dissertação sobre Kant), da Universidade de Ayacucho. Um maoísta insano que não hesitou em criar um culto absurdo da sua própria personalidade – vindo a ser celebrado por seus sectários como o “Presidente Gonzalo” –, Guzmán arregimentou seus primeiros recrutas entre os próprios discípulos. Era preciso um forte descolamento da realidade para que os estudantes tivessem se comportado da forma como se comportaram; coisa que foi proporcionada por uma aceitação acrítica das abstrações maoístas.

A Universidade de Ayacucho, que tinha encerrado as suas atividades no séc. XIX, foi reativada na segunda metade do séc. XX pelo governo peruano numa tentativa de estimular o desenvolvimento econômico numa região empobrecida, segundo os padrões do país. Ao invés disso, essa iniciativa provocou o terror num patamar raramente atingido em outros lugares, e uma bestialidade tão pavorosa, que até hoje tento afastar de minha memória aquelas cenas.
III

Em seguida fui para a Libéria, um país cujas frágeis infraestruturas e instituições foram completamente devastadas numa guerra civil supostamente conduzida em nome da justiça social e política, embora fosse a evidente expressão de uma vontade nua e crua de poder, bem como de enriquecimento ilícito. A história do país na década anterior fora um mergulho num caos e numa anarquia ainda maiores, no curso da qual um oitavo da população foi aniquilada, sendo cada uma das suas etapas acompanhada pela retórica dos propósitos mais elevados.

Conheci pessoalmente um dos líderes do último estágio enquanto estava na Monróvia[1]. Ele assinava como “Marechal de Campo Brigadeiro General Prince Y. Johnson”, e fui aconselhado a falar com ele pela manhã, já que pela tarde ele costumava tomar a sua arma automática e, sob influência do álcool e da maconha, sair atirando nas pessoas mais ao menos ao acaso. Johnson me disse que gostaria de se tornar, ao fim da guerra, um pregador religioso. Discorreu ainda sobre a necessidade de “eleições livres”, “justiça social” e assim por diante.

Um pouco depois, assisti a um conhecido vídeo de Prince Y. Johnson. Não foi fácil, já que na época não havia fornecimento de energia elétrica na Monróvia, uma vez que a usina fora destruída (assim como os bancos, as lojas, as escolas, a universidade e todo o resto). Todavia, consegui acesso a um dos geradores privados ainda em operação e a um projetor de vídeo. O que vi serviu para colocar em alguma espécie de contexto as aspirações e altos propósitos de Johnson.

Prince era o líder da facção que havia capturado o presidente anterior, Samuel Doe. O próprio Doe fora o líder dos soldados que haviam eliminado o seu predecessor, William Tolbert, matando-o brutalmente, bem como todos os membros do seu governo. Nos anos seguintes, Mestre Sargento Doe, com uma aparência algo manca e faminta, transformou-se no suave e gordo Dr. Samuel K. Doe (tendo-lhe sido concedido um doutorado honoris causa por uma universidade sul-coreana, como retribuição pelas concessões de direitos de exploração madeireira na floresta da Libéria – uma confirmação, se acaso fosse preciso, do grande dictum do mais tarde Marechal Mabuto Sese Seko, segundo o qual são precisos dois para que se possa falar em corrupção).

No vídeo Prince Y. Johnson – aquele da “justiça social” e das “eleições livres” – senta-se junto a uma escrivaninha enquanto bebe algumas latas de cerveja diante de Samuel Doe nu e acorrentado no chão. Entre um gole e outro, exige de Doe os números das suas contas bancárias em Londres; e quando este nega que tenha qualquer dessas contas, ele ordena ao seu assistente que tome uma faca e corte as orelhas de Doe a fim de encorajá-lo a falar.

Doe, deposto em nome da democracia e da justiça social, foi torturado até à morte por hemorragia.

Foi na Libéria que eu descobri o quão poderosa e irrestrita pode ser a revolta contra a civilização. É claro que eu tinha lido sobre essas coisas nos livros; minha mãe fora uma refugiada da Alemanha nazista. Mas não acreditamos realmente em algo até que o tenhamos visto com nossos próprios olhos; ou melhor, nada tem o mesmo impacto do que aquilo que vemos com eles.

A Libéria, antes da queda dos presidentes Tolbert e Doe era sem dúvida atrasada e primitiva em vários aspectos, mas não em todos. O hospital principal da capital, por exemplo, realizava nessa época cirurgias cardíacas com o coração exposto; um tipo de procedimento que requer uma infraestrutura altamente confiável e sofisticada. No tempo em que fui visitá-lo, entretanto, já estava completamente destruído, como todos os demais hospitais do país. Não falo de bombas ou morteiros; as estruturas estavam intactas. Delinqüentes, na verdade, tinham-no percorrido de cima a baixo, destruindo sistematicamente cada um dos equipamentos, do primeiro ao último, de modo a incapacitar seu funcionamento e eliminar qualquer possibilidade de reparo. O trabalho despendido nessa destruição foi considerável, e realizado sem nenhum outro objetivo que não fosse a própria devastação; a roda de cada uma das macas foi cuidadosamente serrada, e isso com um grau de atenção ao detalhe que teria sido absolutamente admirável caso se tratasse de uma tarefa de maior valor. E nada foi roubado: os restos de cada peça dos equipamentos foram mantidos no mesmíssimo lugar, como se fosse uma advertência dirigida a quem quer que pretendesse reavivar a instituição de que seus esforços seriam inúteis – pois o anjo da destruição retornaria.

IV

Resisti à conclusão de que essa revolta simbólica contra a civilização fosse algo peculiar ou exclusivo da África, o resultado de uma estrutura mental primitiva ou carente de sofisticação intelectual. Em primeiro lugar, jamais notei tal carência nos anos em que vivi por lá; o atraso em termos materiais nunca é um sintoma de atraso mental. E, além disso, uma leitura dos livros do jornalista francês Jean Hatzfeld sobre o genocídio na Ruanda bastaria para fazer desmoronar essa idéia.

Hatzfeld apresenta em seus livros entrevistas com grupos que sobreviveram ao genocídio e também com grupos responsáveis por ele. Posteriormente, ele os entrevistaria mais uma vez após estes últimos terem sido liberados da prisão e mandados de voltas às suas cidades lado-a-lado com seus vizinhos, aqueles que mesmos que antes tinham tentado exterminar. É difícil pensar em algo mais terrível de se narrar.

Mas os entrevistados dos livros de Hatzfeld falavam sobre o que tinham sofrido e realizado de modo eloqüente, e com uma sofisticação intelectual muito maior do que a que se espera de um cidadão médio em meu próprio país. Qualquer que tenha sido a causa do genocídio de Ruanda, não é possível se falar em incapacidade intelectual por parte dos cidadãos ou em uma simplória falta de noção do que estava em jogo em termos morais.

Um primatologista contou-me certa vez que 40% da discrepância entre países no que diz respeito ao nível de violência era atribuível a diferenças na taxa de crescimento populacional. Quanto maior o crescimento da população, maior a disseminação de violência política e criminosa. E, certamente, o crescimento populacional em Ruanda foi surpreendente: cada mulher dava à luz, em média, a nove crianças – e isso contando-se só as sobreviventes.

Todavia, esta explicação tão abstrata está muito longe de dar conta do que de fato aconteceu em Ruanda. Qualquer um que leia os livros de Hatzfeld não tem como não se espantar com a expansiva e prazenteira maldade dos criminosos, os quais, depois de um duro dia de chacina, costumavam festejar e dançar, antes de ir dormir alegremente exaustos. Eles estavam passando, literalmente, os melhores dias das suas vidas.

As barreiras civilizacionais normais tinham sido demolidas, e os preconceitos em favor do comportamento minimamente decente superado (quantas vezes não nos esquecemos de que os preconceitos, com a mesma freqüência com que nos impedem de ser civilizados, também nos mantêm civilizados). Talvez a civilização não passe mesmo de uma fachada que recobre nossa verdadeira natureza, como tantas vezes tem sido acusada; mas isso só faz dela algo mais, e não menos, essencial.

V

Após passar alguns anos vagando por guerras civis, retornei ao meu país, a Inglaterra, para exercer a medicina num hospital localizado num bairro pobre, e também na grande penitenciária que havia ao lado. O que descobriria nos próximos quinze anos alarmou-me mais do que qualquer coisa que tenha observado nos países assolados pela guerra pelos quais passei.

Até o meu retorno, tinha conservado uma visão levemente cor-de-rosa sobre meu país. O General de Gaulle começou as suas memórias com essa frase prosaica “toute ma vie, je me suis fait une certaine idée de la France” – toda a minha vida fiz uma certa idéia da França – mais especificamente uma idéia de glória e grandeza, de um país que era uma luminária para o mundo no que se refere a todas as artes da civilização. Bem, de certo modo eu fazia uma certa idéia da Inglaterra: de um país exemplar em matéria de civilidade, cujos habitantes mantinham uma visão intrinsecamente irônica da vida, o que lhes permitia agir com um louvável auto-controle. O que eu descobri foi precisamente o oposto.

Nos anos que se seguiram ao meu nascimento (ao qual não atribuo, é claro, nenhuma significância causal nessa matéria), meu país deixou de estar entre as nações mais civilizadas e livres do crime no mundo ocidental, para estar entre as mais inseguras e ameaçadas por ele. É como se, nesse intervalo, a população tivesse experimentado uma mudança radical de gestalt: o que era visto como bom era agora mau, e vice-versa. O auto-controle passou a ser visto como mera hipocrisia e (o que é muito pior) uma traição ao próprio eu. Uma visão sub-freudiana das conseqüências do controle sobre nossos desejos tinha tomado conta das pessoas. Não se acreditava mais que desejos arbitrários cresceriam a medida que fossem excitados; mas que, como um fluido num recipiente fechado, não podiam ser comprimidos, tendo de ser libertados de um modo ou de outro.

VI

Essa mudança de atitude ocorreu sem dúvida lentamente. Lembro-me, por exemplo, de um debate nos anos 70 sobre as conseqüências para o comportamento social do aumento crescente do nível de violência em programas de televisão. Os participantes dividiram-se em dois grupos principais: aqueles que acreditavam que a violência cada vez maior na televisão e no cinema seria imitada na vida real, com um correspondente crescimento da violência; e aqueles que, ao contrário, pensavam que isso teria efeitos catárticos, levando a uma queda nos níveis de violência na realidade.

De acordo com o primeiro grupo, aqueles que assistiam ininterruptamente a uma série de filmes ou programas de televisão violentos acabariam mais inclinados a cometer atos de violência. De acordo com o segundo, por sua vez, essas mesmas pessoas ficariam, pelo contrário, menos inclinadas a isso. Sua justificativa era que dentro de cada pessoa haveria um potencial fixo ou uma certa quantidade de violência concentrada, a qual tinha de ser descarregada tal qual eletricidade estática, fosse virtualmente pela imaginação, fosse realmente pelas vias de fato. Se a violência fosse descarregada pela imaginação, haveria conseqüentemente menos violência na realidade.

No debate, acabei por me alinhar instintivamente, e sem dúvida a partir de fundamentos inadequados, com a primeira escola de pensamento. Em minha época de estudante, havia visto o filme de Stanley Kubrick baseado no livro de Anthony Burgess, A laranja mecânica, e ficara horrorizado ao me deparar, fora das salas de cinema, com alguns jovens vestidos como o gratuitamente violento protagonista do filme. Não sei se esses rapazes chegaram alguma vez a cometer realmente um ato de violência, mas o simples fato de terem achado aquele personagem tão brutal uma figura atraente e digna de imitação era já algo suficientemente assustador. O bom senso sugeria naturalmente que era muito mais provável que aquela admiração gerasse a violência do que a inibisse.

Essa experiência, mesmo sendo uma evidência tão precária, inclinou-me psicologicamente a aderir à primeira (e mais cautelosa) linha de pensamento sobre o problema. Mas na verdade, até onde sei, as evidências indicam que as representações de violência na tela não levam de modo algum pessoas adultas normalmente pacíficas a se tornarem violentas. Todavia, crianças que crescem desde os primeiros anos expostas diariamente a uma boa dose destas representações ficam muito mais inclinadas – apenas estatisticamente, e não em todos os casos – a adotarem um comportamento violento. Em sociedades no seio das quais, fosse por seu isolamento ou por qualquer outro motivo, a televisão foi introduzida em um estágio comparativamente tardio, verificou-se que os índices de violência não subiram imediatamente, mas dez anos depois; justamente no momento em que a primeira geração de crianças expostas a ela atingia a idade na qual se tornaram capazes, sem dúvida por razões biológicas, a cometer atos violentos.

Na Inglaterra, certamente as águas desse debate tornaram-se turvas em razão do problema da censura. Pois os liberais intuíram instintivamente que, caso ficasse provado que a violência nas telas acarretava de fato a violência na vida real, surgiria uma forte demanda pela censura. Diante desse risco, eles passaram a empregar um imenso esforço intelectual tentando negar as evidências que apontavam numa única direção – embora de fato estivessem longe de serem totalmente conclusivas. Esqueciam-se de que o fato de a violência nas telas efetivamente promover, segundo as estatísticas, a violência na vida real, não implica necessariamente que a censura seja a única solução; assim como do fato de que o álcool cause cirrose no fígado (com muito mais certeza do que a correlação entre as telas e a violência), não se segue que ele deva ser proibido. Poucos fins são tão desejáveis a ponto de justificarem o uso de quaisquer meios; e, do ponto de vista lógico, é perfeitamente possível aceitar que a violência nas telas leve à violência na vida real e ainda assim recusar o uso da censura, ao menos pelo poder público. Afinal de contas, os remédios se revelam com freqüência muito piores do que a doença.

VII

Uma nova versão desse debate surgiu com a retomada da psicologia evolucionista ou darwiniana. Segundo esse ponto de vista, em poucas palavras, nós, enquanto espécie, utilizamos a violência para preservar e promover a disseminação dos nossos genes. Isso explicaria, por exemplo, porque há uma tendência muito maior ao abuso e assassinato de crianças por seus padrastos ou madrastas do que pelos pais biológicos. Padrastos que assassinam seus enteados seriam como os leões que, ao se tornarem machos dominantes de seu respectivo grupo, matam os filhotes do antigo macho alfa. O novo leão não tolera – ou melhor, os seus genes não toleram – que a Dona Leoa desperdice as suas energias maternais promovendo ou disseminando os genes de outro leão em prejuízo das chances de sobrevivência e crescimento da sua própria prole. Isso valeria para os padrastos humanos em geral: eles não aceitariam que a mãe dos seus filhos biológicos atuais ou futuros se dedicasse a cuidar dos filhos de outro homem; e tampouco aceitariam gastar as suas energias com uma tarefa tão contraproducente do ponto de vista dos seus próprios genes.

É desnecessário dizer, entretanto, que tal hipótese – por mais atraente que possa ser para aqueles que, como alternativa às concepções de Marx e Freud, buscam uma explicação total e definitiva para o comportamento humano – jamais será suficiente para explicar a variação, no tempo ou no espaço, das taxas de violência homicida contra crianças. Não explica, por exemplo, porque a maioria dos pais adotivos não mata ou abusa de seus filhos não-biológicos, embora, segundo essa concepção, isso devesse ocorrer com maior freqüência do que no caso dos pais biológicos. Tampouco explica porque a relação entre padrasto e filho, antes rara na Inglaterra, tenha se tornado tão comum nas últimas décadas. Quando eu nasci, menos de 5% dos nascimentos procedia de pais não casados; agora a taxa é de 42%, e segue crescendo. É provável que pelo menos 40% das crianças britânicas de hoje passem, ao menos em algum período da infância, pela experiência de morar com um pai ou mãe solteiros, ou casados com outros parceiros (ou, evidentemente, ambos ao mesmo tempo). Certamente, hoje em dia é mais comum que crianças britânicas tenham uma televisão em seus quartos do que um pai em suas casas: com efeito, há duas vezes mais crianças britânicas (36%) que nunca desfrutam de uma refeição com outros membros da família, do que crianças que não têm um televisor em seus quartos (21%). Esses desdobramentos recentes, bem como o correlato crescimento do número de paternidades putativas (envolvendo padrastos e madrastas), dificilmente podem ser explicados pela psicologia evolucionista; a não ser que se valham do tipo de ação de retaguarda intelectual tal como a usada pelos astrônomos que queriam preservar a todo custo o sistema ptolomaico contra o desafio copernicano.

VIII

Seja como for, fiquei chocado, e bastante perturbado, com o nível de violência que descobri entre os meus pacientes na Inglaterra. Tal violência não era de modo algum uma resposta ao desespero econômico, ao menos em nenhum sentido muito óbvio ou direto, como a fome ou a falta de moradia. A carência total de meios materiais, do tipo que meu pai presenciou na zona leste de Londres durante e logo após a Segunda Guerra, já havia sido completamente erradicada na época. De fato, meus pacientes, embora relativamente pobres segundo os padrões médios da sociedade em que viviam, tinham acesso a confortos e comodidades que teriam feito Luís XIV perder o fôlego de surpresa e admiração. (Realmente não há modo melhor de avaliar o progresso material conquistado por nós do que considerar as doenças e o tratamento médico de gente como Felipe II da Espanha, Luís XIV da França e Carlos II ou George III da Inglaterra. Quase ninguém, nos dias de hoje, sofre as agonias experimentadas por esses monarcas ou as atrocidades a que foram submetidos pelos médicos da época). Mas essa era uma consolação inútil para meus pacientes, que se comparavam não a Luís XIV, mas aos seus contemporâneos ricos.

O desespero nas sociedades contemporâneas não é absolutamente um estado psicológico que possa ser explicado pelo desconforto ou pela frustração de quaisquer necessidades materiais. Há muito se sabe que nas sociedades ocidentais o suicídio é tão freqüente nas classes sociais mais altas quanto nas mais baixas. Hoje em dia, não só as classes baixas não sofrem, como outrora, carência em nível calamitoso, como também as mais altas não são minimamente afetadas por ela. Assim, nas sociedades modernas, é impossível sustentar que o desespero e a angústia estejam diretamente relacionados às circunstâncias econômicas.

Entretanto, o desespero desolador dos meus pacientes – entre os quais contavam-se tanto vítimas como autores de violência doméstica – estava fora de qualquer dúvida. Devo observar que examinei entre 10 e 15 mil casos de tentativa de suicídio, envolvendo graus variáveis no que diz respeito à vontade de morrer. A cada ano, procuravam-me mais ou menos 400 mulheres que tinham sido espancadas pelos seus parceiros, e por volta de 400 homens que tinham acabado de espancar suas parceiras. Era também consultado por um número cada vez maior de mulheres que tinham cometido atos violentos – mais de cem por ano. De fato, a violência por parte das mulheres aumentava rapidamente. É como se elas estivessem determinadas a provar que eram iguais aos homens em tudo… até na violência.

A minha amostragem do material humano inglês era, evidentemente, peculiar; mas estava longe de ser pouco numerosa. Cada paciente contava-me não só coisas sobre a sua própria vida, mas também sobre as vidas de quatro ou cinco pessoas conhecidas. Em todo esse tempo no qual trabalhei no hospital, devo ter ouvido sobre as vidas de pelo menos 5 a 10% das pessoas que viviam numa cidade de um milhão de habitantes. Uma vez que havia outros dois hospitais muito parecidos com o meu na cidade, nos quais números similares de tentativas de suicídio eram tratados, pode-se concluir razoavelmente que as histórias que me eram contadas representavam as vidas de algo em torno de 15 a 30% de sua população. E isso constituía um número mínimo, porque evidentemente nem todos os que eram tratados tinham um parente próximo ou amigo que tivesse tentado o suicídio. Em outras palavras, a violência estava de fato se alastrando amplamente.

Havia também outras razões para se supor que ela estava crescendo. O número de pessoas que tomavam overdoses tinha aumentado, enquanto a população mantinha-se mais ou menos estável; o número de homens que haviam ingerido overdoses crescera de modo particularmente rápido, tanto absoluta quanto relativamente. Quando comecei a trabalhar no hospital, mais mulheres do que homens tomavam overdoses; quando saí era o contrário.

Os homens que tomavam overdoses eram predominantemente jovens, e mais ou menos um quarto deles tinha acabado de cometer violência contra suas namoradas. É claro que a intensidade dessa violência variava, mas normalmente tratava-se de algo suficientemente assustador, fato confirmado pela natureza das histórias contadas pelas vítimas. Além disso, os jovens que cometiam violência contra suas namoradas eram também freqüentemente violentos no trato com outras pessoas: sua violência era fruto de uma propensão geral.

Não desenvolvi nenhuma espécie de tipologia formal baseada nesses atos, mais eis uma pequena amostra: estrangulamento, muitas vezes até a perda de consciência; chutes no estômago com a finalidade de provocar abortos; arrastar a mulher no chão pelos cabelos; bater a sua cabeça contra uma janela e mesmo através dela; trancafiá-la num armário por um dia inteiro; queimá-la com cigarros acesos; esmurrá-la repetidamente no rosto; ameaçar jogá-la de uma sacada situada muito alto (um homem chegou inclusive a suspender sua namorada pelos tornozelos da sacada do décimo primeiro andar).

IX

Assim, das duas uma: ou essa violência estava se tornando mais freqüente, ou era o hábito de se tomar overdoses após praticá-las que aumentava. A primeira hipótese parece mais provável. Mas porque essas pessoas tomavam overdoses depois de se comportar dessa maneira?

Haviam três razões principais para isso. A primeira, e menos freqüente, era que, depois da mulher violentada apresentar uma queixa à polícia, o seu parceiro tomava uma overdose a fim de deixar claro que ele sofria de algum desequilíbrio, psicológico ou fisiológico, coisa que ajudaria a provar sua inocência caso o inquérito chegasse à Justiça.

A segunda razão era um pedido de perdão dissimulado à mulher agredida, que ameaçava deixá-lo. Era dissimulado porque, como veremos adiante, a sua violência era deliberada, astuta, calculada e propositada. Contudo, as desculpas fingidas muitas vezes eram bem-sucedidas. Elas sempre traziam um componente de chantagem emocional: “Se você me deixar eu me mato e você jamais será capaz de se perdoar por isso”.

A terceira razão era talvez um pouco mais sutil. A maioria das pessoas desejam ter uma boa imagem de si para si mesmas. Elas aceitam implicitamente a visão de Rousseau (sem nunca ter ouvido falar em Rousseau, é claro, já que a influência intelectual é muitas vezes indireta), segundo a qual o homem nasce puro e bom, mas as influências perturbadoras do meio social acabam por pervertê-lo. Tomando uma overdose e recebendo atenção médica, o homem violento encontra os meios de se persuadir a si mesmo de que não há nada errado com ele – pois caso contrário ele não teria tomado uma overdose –, e de que ele é, na verdade, a maior vítima da sua própria conduta. Ao mesmo tempo, sendo a mente humana um instrumento complexo e contraditório, ele sabe perfeitamente bem que continuará a cometer os mesmos atos violentos já que eles servem aos seus propósitos.

Pessoas assim buscam apresentar a sua violência como uma espécie de enfermidade neurológica incontrolável, um pouco como um ataque epilético. Seriam, assim, incapazes de evitá-la: “ela simplesmente toma conta de mim”, como dizem sempre. Estranhamente, trata-se de uma idéia que a própria mulher agredida tende a abraçar de forma entusiástica. Ela prefere não acreditar que o homem a quem ama, ou que crê amar, seja de fato um perverso que age por pura maldade; que a sua imagem dele era uma mentira, e seus critérios suspeitos. Deseja continuar ao lado do homem que a espancou, desde que ele passe por um tratamento. Assim, ela joga o jogo de faz-de-conta de seu parceiro, fingindo, como ele, que tudo é decorrência inevitável de algum distúrbio clínico do qual é inocente.

Participei de conversas como a seguinte talvez milhares de vezes:

Mulher agredida: Ele precisa de ajuda, doutor.

Eu: Que tipo de ajuda?

Mulher agredida: Algo toma conta dele. Os seus olhos ficam estranhos, e é como se ele não estivesse mais lá. Ele não consegue se controlar, doutor, ele me bate… me estrangula… dá socos…

Eu: Diga-me uma coisa: por acaso ele faria isso na minha frente?

Esta única perguntinha, bastante simples e óbvia, tem muitas vezes a força de uma epifania para a mulher agredida. Como a resposta é obviamente “não”, a conclusão inescapável é que o parceiro é de fato perfeitamente capaz de se controlar e simplesmente opta por não fazê-lo. Deste modo o auto-engano da mulher acaba por se revelar repentinamente nesse diálogo. Trata-se de um momento sem dúvida desconfortável para a mulher violentada, pois, em primeiro lugar, ninguém gosta de se ver exposto às suas próprias mentiras, mas, sobretudo, porque isso transfere do médico para ela mesma o ônus da responsabilidade por tomar alguma atitude em relação ao problema, e a obriga a fazer uma escolha nua e crua entre duas alternativas, ambas inevitavelmente dolorosas: aceitar o parceiro como ele é ou simplesmente abandoná-lo. Ao mesmo tempo, a dissolução do mecanismo de auto-engano é experimentada como um alívio; é como se um fardo fosse subitamente tirado dos seus ombros, pois com algum grau de consciência é certo que no fundo sempre soube que estava contando uma mentira para si mesma. Manter um fingimento é um trabalho árduo, e para se dissimular uma mentira é necessário um grande dispêndio energia – especialmente quando se trata de mentir para si mesmo. Mas então a mulher torna-se capaz de ver o absurdo do seu auto-engano, bem como de rir dele.

X

De modo igualmente tortuoso, o agressor sabe perfeitamente bem que não se sente culpado pelo que fez, que só está fingindo a vontade de superar o seu problema, e que, na realidade, pretende continuar a se comportar exatamente como antes. Mas porque ele age assim? Quais possíveis vantagens aufere através da sua conduta violenta?

Em primeiro lugar há o amor puro e simples pela crueldade em si mesma: é prazeroso, ao menos para algumas pessoas, causar sofrimento a outras. Mas mais importante é entender a natureza do desejo sexual tal como se manifesta na Inglaterra contemporânea.

Todas as pessoas – e particularmente os homens – buscam conquistar, por um lado, uma liberdade sexual absolutamente irrestrita e, por outro, a exclusividade total da posse sexual sobre outra pessoa. Não é difícil ver como esses dois desejos completamente incompatíveis, quando disseminados massivamente por uma população (como de fato vem ocorrendo na nossa), levam à violência e a um caos incontrolável. Pois se um homem é deliberadamente um predador sexual; se, por exemplo, sua namorada atual foi “roubada” de seu melhor amigo – um padrão recorrente, diga-se de passagem –, ele naturalmente acreditará que cada um dos outros homens age do mesmo modo, e que, portanto, todos eles representam uma constante ameaça a ele e à sua masculinidade. Ele será totalmente incapaz de confiar em alguém; sequer em seus assim chamados “amigos”. Isso explica porque os infiéis incorrigíveis são também, com freqüência, ciumentos mórbidos. Explica também o motivo pelo qual tantos casos de violência doméstica começam com um homem olhando diretamente para a mulher de outro em algum bar ou casa noturna. O sujeito acredita que está sendo desafiado diante de sua mulher, a qual estaria sendo cogitada por outro como uma possível parceira sexual. O fato de que em outras circunstâncias ele se comporte exatamente do mesmo modo só faz aumentar ainda mais a sua indignação.

Nada disso importaria muito se a exclusividade da posse sexual não fosse tão importante para esses homens – mas o problema é que ela é. Eles não são sutis o suficiente para disfarçar o seus instintos predatórios, mantendo-os em segredo; o velho hábito de lançar um véu sobre eles, e de disfarçá-los como se fossem alguma outra coisa, subitamente desaparece. Uma irrupção crua leva instantaneamente à violência real.

Uma das maneiras que um homem que vive em tais ambientes tem de assegurar a exclusividade da posse sexual sobre sua mulher, ao menos até o momento em que ela o deixe definitivamente, é ameaçá-la com agressões arbitrárias e imprevisíveis. O homem que vê em todos os outros um possível predador sexual será, decerto, extremamente ciumento e possessivo; e usará a suposta inclinação à infidelidade da parte de sua mulher como um pretexto para agredi-la. Ela, que é inocente dessas acusações, emprega uma quantidade enorme de tempo e energia mental tentando provar essa inocência – o que, evidentemente, não pode ser feito, já que, para começo de conversa, no fundo ele não acredita realmente nessa culpa – e impedir a todo custo os acessos de cólera do parceiro. Sendo esses acessos completamente arbitrários, ela nada pode fazer para evitá-los: eles são exercícios de profilaxia e não de punição. Uma mulher que está constantemente preocupada com uma agressão iminente e com os meios de impedi-la é incapaz de olhar para qualquer outro homem. Pelo contrário; os seus pensamentos estão incessantemente concentrados no homem que a agride ou violenta – e é precisamente isso o que ele quer. A sua violência pode portanto ser arbitrária, mas não é, como se vê, de todo desprovida de propósito.

Antes que eu passe a considerar as razões pelas quais a exclusividade da posse sexual sobre outro tornou-se algo tão importe numa sociedade que, contraditoriamente, disseminou tão abertamente a liberdade sexual, permitam-me uma brevíssima digressão a fim de mostrar mais uma vez que, infelizmente, o homem é constituído de tal forma que o domínio sobre os outros lhe é extremamente gratificante. A partir do momento em que as barreiras e limites desmoronam, todo um mundo de prazer sádico irrompe; essa é precisamente a razão pela qual as multidões excitam tanto os seus participantes, e pela qual a conservação dessas mesmas barreiras e limites é uma missão tão fundamental para a sociedade. Um dos aspectos mais horripilantes das fotografias tiradas na prisão de Abu Ghraib era o prazer evidente saboreado pelos agressores. Mesmo que o gozo do sadismo não seja universal entre os homens, ele é suficientemente comum e arraigado para, dadas as condições propícias, disseminar o inferno sobre a Terra. Uma tese minha, embora fundada num argumento um pouco diferente, é que foi a política social liberal inglesa, difundida por muitos anos de propaganda liberal, aquilo que permitiu, numa parcela tão grande do país, o desenvolvimento e a infestação de tal inferno.

XI

Agora voltemos à questão das razões pelas quais a exclusividade da posse sexual de outrem é tão importante para tantos jovens que, paradoxalmente, não acreditam em qualquer espécie de restrição à sua própria liberdade. A resposta não tem, evidentemente, nada a ver com o amor – a não ser que seja amor ao próprio ego. O ciumento não ama o objeto do seu ciúme, mas a idéia do seu poder e da sua posse sobre ele.

Nesse ponto, vale a pena refletir sobre três características da sociedade ocidental moderna, da qual é exemplo a britânica. Em primeiro lugar, ela é altamente desigual num ambiente cultural no qual a igualdade é tida como a única base ética da sociedade, sendo de fato o critério absoluto do qual se vale para testar a legitimidade moral. Em segundo, ela é meritocrática, tanto na sua auto-imagem como no fato de que não há nenhuma barreira legal para que uma pessoa ascenda socialmente (ou desça, é claro, mas poucas pessoas se preocupam com esse corolário). Na verdade, essas barreiras legais são inclusive proibidas pelo sistema jurídico. Em terceiro e último, ela é grosseira e cruamente materialista: ou seja, tanto o sucesso como o fracasso são medidos quase que exclusivamente em função das posses materiais, ou pela capacidade de uma pessoa de adquiri-las. É por isso que entre os jovens da zona na qual eu trabalhava havia uma intensa preocupação em usar roupas de marca com logotipos visíveis, cuja posse conferia status, e cuja ausência significava inferioridade. Tive conhecimento de um caso de disputa entre jovens envolvendo o status relativo a uma marca dos tênis usados por um deles, a qual começou com insultos e terminou em assassinato. Nunca o dictum de Freud – e eu não sou freudiano – sobre o narcisismo envolvendo minúsculas diferenças manifestou-se tão clara e tragicamente.

Esses jovens tão violentos procediam de camadas sociais mais baixas do ponto de vista econômico e educacional. Eles tinham poucas chances de sucesso real por não possuírem nem as habilidades nem os talentos necessários para tanto. O seu estado psicológico era uma mistura altamente inflamável: de revolta e ressentimento, por um lado, em razão da frustração de direitos derivados do igualitarismo – o fundamento exclusivo das nossas concepções de justiça –; e, por outro, da consciência do fracasso pessoal e de inadequação, uma consciência excitada pela natureza meritocrática da sociedade. Numa sociedade meritocrática, afinal de contas, o sucesso é merecido: o corolário disso é que o fracasso é igualmente merecido. E quando a posse material é o único critério de sucesso, aqueles que têm poucas posses (ainda que algumas delas tivessem sido suficientes para deixar o Rei Sol maravilhado) são tidos por homens fracassados. Mas homens fracassados com excesso de testosterona.

Uma compensação por esse fracasso só pode ser procurada em outro lugar, em um campo diverso. O controle absoluto sobre uma mulher compensa a total ausência de controle em outras esferas das suas vidas. Um jovem pode não valer nada a partir do momento em que põe o pé fora de casa (embora tente provar aos outros com a sua jactância e o seu andar malicioso que vale alguma coisa), mas dentro do lar ele é mais poderoso do que Stalin. Pela sua violência, ele se torna, ao menos para uma pessoa, todo-poderoso.

A sua violência é genérica, entretanto, e só pode ser inibida pela presença de pessoas mais fortes, mais capazes de a exercer do que ele. Em parte, essa violência se deve também à sua educação. Numa situação de colapso social generalizado, a disciplina nunca se funda sobre princípios, sobre aquilo que em geral é tido por correto praticar. Ela depende, na verdade, do ânimo arbitrário e momentâneo de pessoas que são fisicamente mais poderosas do que o indivíduo, e do que ele é capaz de fazer em tal situação. Nessas circunstâncias, todas as relações humanas se convertem em relações de poder, como na questão de Lênin colocada em forma sintética: “Quem para quem?”; ou seja, quem faz o que para quem? E um poder desse tipo constitui um jogo de soma zero: o poder de um homem é a impotência de outro.

* * *

A violência, portanto, não é jamais uma pura e simples reação a condições sociais adversas. Não é como a chuva, que cai tão logo se verifiquem as devidas condições climáticas. E tampouco é em si mesma um sinal de injustiça social ou de uma situação política intolerável (uma prova disso é que nem sempre as sociedades pacíficas, não-violentas e isentas de crimes são locais onde o direito e a legalidade prevalecem). A violência jamais poderá ser compreendida corretamente se não levarmos em conta as idéias que as pessoas têm sobre o que é certo; o que é justo; o que é correto; o que cada um merece; quais são as conseqüências para quem a pratica; e, acima de tudo, sobre o que é realmente importante na vida. E isso prova a verdade daquele grande dictum de Pascal: esforcemo-nos para pensar com clareza, pois isso constitui o princípio da moralidade.
Theodore Dalrymple é um dos pseudônimos literários do psiquiatra inglês Anthony M. Daniels. Daniels trabalhou no Zimbábue, Tanzânia, África do Sul, Kiribati, e mais tarde no east end londrino e, até aposentar-se em 2005, em um hospital e uma penitenciária situados em uma área de cortiços de Birmingham. Tem escrito regularmente em diversas publicações inglesas e americanas sobre cultura, arte, política, educação e medicina. Publicou já várias coletâneas de ensaios e relatos de viagens, dentre os quais: Fool or Physician: The Memoirs of a Sceptical Doctor (1987), The Wilder Shores of Marx: Journeys in a Vanishing World (1991), If Symptoms Persist: Anecdotes from a Doctor (1994), Life at the Bottom: The Worldview That Makes the Underclass (2001), Our Culture, What’s Left of It: The Mandarins and the Masses (2005), Making Bad Decisions. About the Way we Think of Social Problems (2006), In Praise of Prejudice: The Necessity of Preconceived Ideas (2007), Not With a Bang But a Whimper: The Politics and Culture of Decline (UK edition; 2009).

Tradução de Julio Lemos e Marcelo Consentino.

[1] Capital da Libéria

* Publicado originalmente na Dicta&Contradicta – 4

Happy Birthday Ayn Rand


aynrand

É impossível falar em liberdade individual sem falar em Ayn Rand.

Sua leitura é uma transfusão de ânimo para todos que lutam contra a mediocridade, a hipocrisia, que ainda se indignam com a política e aqueles que buscam realizar seus sonhos de forma racional e existir verdadeiramente.

Em seus livros encontramos valores como trabalho produtivo, amor com admiração, racionalidade com emoção, individualismo com amizade, felicidade sem culpa.

“Rand explicava as coisas com uma clareza fora do comum. Escreveu, por exemplo: “Qual é o princípio básico, essencial, crucial, que diferencia a liberdade da escravidão? É o princípio da ação voluntária versus a coerção física ou por ameaças… A questão não é a escravidão por uma ‘boa’ causa versus a escravidão por uma causa ‘ruim’; a questão não é a ditadura de uma gangue ‘boa’ contra a ditadura de uma gangue ‘má’. A questão é liberdade versus ditadura… Se defendemos a liberdade, devemos defender os direitos individuais do homem; se defendemos os direitos individuais do homem, devemos defender seu direito à sua própria vida, à sua própria liberdade, e à busca de sua própria felicidade… Sem direitos de propriedade, nenhum outro direito é possível. Uma vez que o homem precisa sustentar sua vida através de seu próprio trabalho, o homem que não tem direito ao produto de seu trabalho não tem meios de sustentar sua vida.” E ela discordava dos defensores da liberdade que esperavam ganhar influência apenas com a economia de mercado: “A maioria das pessoas sabe, de uma forma vaga e incômoda, que há algo de errado com a teoria econômica marxista… A raiz da tragédia moderna é filosófica e moral. As pessoas não estão aderindo ao coletivismo porque aceitaram a má teoria econômica, elas estão aceitando a má teoria econômica porque aderiram ao coletivismo.” Cato Institute.

Para celebrar os 110 anos de seu nascimento, deixo 3 trechos de 3 livros que tiveram grande influência em minha vida, e para que possam também ser conhecidos por outras pessoas que assim como eu acredita que, o mais depravado dos seres humanos é aquele que não têm objetivos.

The Fountainhead

“O homem que tenta viver pelos outros é um dependente. Ele é um parasita na motivação e torna os que ele serve parasitas também. O relacionamento produz nada além de corrupção mútua. É impossível em conceito. A aproximação mais próxima a isso na realidade – o homem que vive para servir outros – é escravidão. Se escravidão física é repulsiva, quão mais repulsiva é o conceito de servilidade do espírito? O escravo conquistado tem um vestígio de honra. Ele tem o mérito de ter resistido e de considerar sua má condição. Mas o homem que escraviza a si mesmo voluntariamente em nome de amor é a criatura mais baixa. Ele degrada a dignidade do homem e ele degrada o conceito de amor. Mas essa é a essência do altruísmo.

Os homens foram ensinados que a maior virtude não é conquistar, mas dar. No entanto, não se pode dar aquilo que não foi criado. Criação vem antes da distribuição ou não haverá nada para distribuir. A necessidade do criador vem antes da necessidade de qualquer beneficiário possível. No entanto, somos ensinados a admirar a mão secundária que distribui presentes que não produziu acima do homem que fez os presentes possíveis. Louvamos um ato de caridade. Nos revoltamos com um ato de conquista.

Os homens foram ensinados que sua primeira preocupação é aliviar o sofrimento dos outros. Mas o sofrimento é uma doença. Se esbarrar com isso, tenta dar uma ajuda e assistência. Para fazer com que o maior teste da virtude seja fazer sofrimento a parte mais importante da vida. Então o homem tem desejo de ver os outros sofrerem, a fim de que ele possa ser virtuoso. Essa é a natureza do altruísmo. O criador não está preocupado com a doença, mas com a vida. No entanto, o trabalho dos criadores eliminaram uma forma de doença após a outra, no corpo e espírito do homem, e trouxe mais alívio no sofrimento do que qualquer altruísta poderia conceber.

Os homens foram ensinados que é uma virtude concordar com os outros. Mas o criador é o homem que discorda. Os homens foram ensinados que é uma virtude nadar com a corrente. Mas o criador é o homem que vai contra a corrente. Os homens foram ensinados que é uma virtude estarem juntos. Mas o criador é o homem que está sozinho.

Os homens foram ensinados que o ego é o sinônimo do mal, e altruísmo o ideal de virtude. Mas o criador é o egoísta no sentido absoluto, e o homem altruísta é aquele que não pensa, sente, julga ou age. Estas são funções do ego.”  Íntegra do discurso aqui em : Fountainhead Speech

atlas

A REVOLTA DE ATLAS

” Parei quando a medicina foi colocada sob controle estatal há alguns anos – contou o Dr. Hendricks. – A senhorita imagina o que é preciso saber para operar um cérebro? Sabe o tipo de especialização que isso requer, os anos de dedicação apaixonada, implacável, absoluta para atingi-la? Foi isso que me recusei a colocar à disposição de homens cuja única qualificação para mandar em mim era sua capacidade de vomitar as generalidades fraudulentas graças às quais conseguiram se eleger para cargos que lhes conferem o privilégio de impor sua vontade pela força das armas.

Não deixei que determinassem o objetivo ao qual eu dedicara meus anos de formação, nem as condições sob as quais eu trabalharia, nem a escolha de pacientes, nem o valor de minha remuneração. Observei que, em todas as discussões que precediam a escravização da medicina, tudo se discutia, menos os desejos dos médicos. As pessoas só se preocupavam com o “bem-estar” dos pacientes, sem pensar naqueles que o proporcionavam.

A ideia de que os médicos teriam direitos, desejos e opiniões em relação à questão era considerada egoísta e irrelevante. Não cabe a eles opinar, diziam, e sim apenas “servir”. Que um homem disposto a trabalhar sob compulsão é um irracional perigoso para trabalhar até mesmo num matadouro é coisa que jamais ocorreu àqueles que se propunham a ajudar os doentes tornando a vida impossível para os sãos.

Muitas vezes me espanto diante da presunção com que as pessoas afirmam seu direito de me escravizar, controlar meu trabalho, dobrar minha vontade, violar minha consciência e sufocar minha mente – o que elas vão esperar de mim quando eu as estiver operando? O código moral delas lhes ensinou que vale a pena confiar na virtude de suas vítimas. Pois é essa virtude que eu agora lhes nego.

Que elas descubram o tipo de médico que o sistema delas vai produzir. Que descubram, nas salas de operação e nas enfermarias, que não é seguro confiar suas vidas às mãos de um homem cuja vida elas sufocaram. Não é seguro se ele é o tipo de homem que se ressente disso – e é menos seguro ainda se ele é o tipo de homem que não se ressente.”

“Dificilmente uma obra irá colocar de forma tão clara e transparente o conflito entre o Estado e a iniciativa privada, uma realidade ainda atual em muitas sociedades. Em seu esforço de empreender, gerar empregos e produção, o empresário se depara com um Estado burocrático que limita suas ações. Várias obras históricas retratam essa mesma temática, mas somente o texto primoroso de Ayn Rand destaca o sofrimento humano gerado por todo este processo.” – Jorge Gerdau Johannpeter – Presidente do Conselho de Administração da GERDAU

“A crise de 2007 e 2008 trouxe de volta a ameaça do Estado totalitário, controlador, pesado, burocrático e opressor. John Galt é a resposta a este leviatã. A longo prazo é o capitalismo que proporcionará mais riqueza e bem-estar.” – Salim Mattar Presidente do Conselho de Administração e CEO da Localiza Rent a Car S/A

A VIRTUDE DO EGOÍSMO

  • A pergunta “a vida não requer um pacto?” é geralmente feita por aqueles que falham ao diferenciar um princípio básico e algum  desejo específico concreto.
    (…) A desculpa dada em todos os casos do gênero é que o “pacto” é apenas temporário, e que a integridade pessoal será recompensada em algum futuro indeterminado. Mas não se pode corrigir a irracionalidade de um marido ou esposa submetendo-se a ela e encorajando-a a crescer. O indivíduo não pode alcançar a vitória de suas ideias ajudando a propagar as opostas às suas. Não se pode oferecer uma obra prima literária, quando se ficou rico e famoso, para um círculo de leitores que se conquistou escrevendo lixo. Se se achou difícil manter lealdade às próprias convicções iniciais, uma sucessão de traições – que ajudaram aumentar o poder daquilo nocivo que ele não teve coragem para combater não tornará a tarefa mais fácil depois, pelo contrário, a fará virtualmente impossível. NÃO PODE HAVER PACTOS COM PRINCÍPIOS MORAIS. ” Em qualquer pacto entre comida e veneno, somente a morte pode vencer. Em qualquer pacto entre o bem e o mal, somente o mal pode lucrar” (Quem é John Galt). Então você fica tentando perguntar : A vida não exige um pacto? Traduza a pergunta o seu real significado: “A vida não exige a reação daquilo que é verdadeiro e bom ante o falso e o mau? A resposta é exatamente isto que a vida proíbe – se alguém deseja conquistar nada mais do que uma extensão de anos torturantes gastos em autodestruição progressiva.”